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quarta-feira, 17 de abril de 2013

Catástrofe e animaçao no cinema alternativo cubano

Un escritor ha perdido su lugar en la ciudad. En realidad no queda claro si alguna vez lo tuvo. Nos topamos con él en La escritura y el desastre (2007), largometraje de ficción de Raydel Araoz. O personagem se chama Raydel, como o diretor. De fato, durante o filme, a personagem escreve um roteiro para cinema intitulado La escritura y el desastre, como o próprio título do filme. Mas nos equivocaríamos se buscássemos ali, nas coincidências do nome ou na porosidade entre a vida e o cinema, um ensaio pessoal, um correlato autobiográfico que nos permita comodamente seguir a pista ao  personagem deste filme de peripécias e acidentado triller urbano.
Foto de Raydel Araoz en el estudio de Leticia Tarrago. (Cortesía de Raydel Araoz)
Raydel Araoz é um assíduo inventor de ficções. Suas ficções devoram qualquer relato, incluída a sua própria autobiografía. Suas ficções são inclusive capazes de devorar as autobiografías de suas amizades. Como seu personagem, Raydel é cineasta e escritor. É autor de dois notáveis livros de ficção, El mundo de Brak (2000) e Réquiem para las hormigas (2008), relatos que também poem em relevo, como La escritura y el desastre, o destino da interpretação, o desciframento dos signos e dos sinais entre as ruínas.
¿Cómo se lee a la luz del desastre? Digamos, de entrada, que ambos, Raydel e seu personagem, o protagonista do filme, são leitores de Maurice Blanchot, estimulante novelista e filósofo francês, autor de um livro intitulado, não faltava mais, La escritura del desastre (1980). Ambos, realizador e protagonista se perguntam, como também o fazia Blanchot, sobre os efeitos da catástrofe no pensamento. Sobre a catástrofe do pensamento.
Pelo reverso daquela trama obscura, Raydel Araoz investiga em seus filmes, como o próprio Blanchot em seu livro filosófico, o potencial emergente das formas fragmentárias, a força criativa dos modos descontínuos de narrar a catástrofe. É como se Raydel Araoz nos dissesse: se a catástrofe desestabiliza todo o estável,  por que haveríamos de remenda-la? É muito provável que a experiência do desastre seja inseparável do problema de suas formas, ou seja, da pergunta sobre como narrar a catástrofe, sobretudo se aceitamos que a força aniquiladora do desastre, ou do trauma que produz, é um limite as vezes intransponível da possibilidade mesma do relato. Acaso uma das tarefas da arte moderna, incluído o cinema, seja dar conta desse limite.
Esta claro: Blanchot nunca teve que escrever sobre a catástrofe em um táxi havaneiro. Me refiro ao táxi caindo aos pedaços em que Raydel, o personagem, escreve um roteiro chamado La escritura y el desastre. Como diz outro dos personagens, o chofer do táxi que transporta a Raydel entre os pontos de seu passeio pela cidade em ruínas, “Nada disto estaria acontecendo se La Habana tivesse um Sena como o de París que atravessasse a cidade no verão, e não um Almendares imundo e negro”. La Habana têm sua inavegável Almendares onde não há que se exagerar o horizonte da pertinência da leitura de Blanchot, ainda que seu deslocamento produza no filme de Araoz efeitos narrativos e dramáticos relevantes. Não cabe duvidar que esse irônico desfazer-se ou deslocamento da filosofía européia é um dos efeitos da leitura que Raydel Araoz transforma em motor de seu relato sobre a leitura a luz do desastre.
O filmes de Raydel Araoz seriam meramente uma exploração a mais das ruínas da cidade e do
colapso de seus grandes relatos do futuro –uma instância a mais do exotismo do desgaste socialista que tem proliferado no cinema e na literatura cubana desde Sed, Madagascar, Fresa y chocolate (Morango e Chocolate, em terras tupiniquins) o os contos de José Antonio Ponte-, se não fosse porque  a loucura, a satisfação, produz alí um excêntrico punctum jovial que coloca a gravidade da filosofia e o culturalismo ocidental em seu local. A voz em off do jovem escritor, o protagonista do filme, não dissimula a inflexão filosófica ou literária de seu discurso sobre a “biblioteca em ruínas”, para usar a memorável frase com que o crítico uruguaio Hugo Achúgar designou a crise da cultura literária e dos modelos de interpretação que se desprendiam da autoridade culturalista.
Raydel Araoz assume o desafio de fazer filmes que tematizam uma discussão de idéias sobre a crise da leitura e da interpretação, ou seja, duas questões fundamentais da prática teórica e filosófica contemporânea, mas o faz mediante a detonação da agudeza del choteo como uma fonte não só de “comic relief”, senão de inspiração do diálogo e das peripécias mesmas da narrativa.
La escritura y el desastre exibe as ações da imaginação fílmica do realizador independente, seus recursos narrativos e dispositivos técnicos. O filme exibe com desenvoltura as estratégias de sobrevivência de um inventor de ficções que trabalha sobre a pressão em condições de produção de uma precariedade notável.

Seu trabalho com as zonas descartadas da ordem normativa da filosofia, o cinema e a literatura transborda qualquer marco institucional, assim como qualquer lógica de mercado, dando-lhe uma dimensão imprevista, nova. A idéia de “cine pobre” cunhada faz anos por Humberto Solás. Seus personagens certamente habitam o mundo da pobreza, mas não habitam os dramas tradicionais da pobreza, não a encarnam segundo o molde dos consagrados relatos da carência, da morte, da culpa ou da vitimização. Tao pouco recorre a um fechamento  emancipatório.  O trabalho fílmico de Araoz resulta em um cinema emergente que na contrapartida dos limitadíssimos recursos financeiros com que conta, reclama um direito a exuberância narrativa potencializada pelos efeitos mais audazes da pós-produção digital caseira.
Raydel Araoz é o realizador de um cinema por conta própria.  Reside em La Habana, ainda que as vezes viaje para trabalhar no México e logo regresse a sua cidade natal. Fiz esta entrevista com ele no inicio de outubro de 2011 em Nova York, pouco depois de ver a mostra de cine cubano de animação que Raydel Araoz preparou para o Festival de Cine Iberoamericano da Nova Inglaterra.1 Aquela  mostra de animação cubana incluiu curta-metragens quase desconhecidos de Hernán Hernández (Osain de 1966), Sandu Darie, (Cotorama, 1965) e de Jesús de Armas (La frontera, 1963). A mostra incluiu também dois curtas realizados por Raydel Araoz (comentados por ele nesta entrevista, com enlaces da rede aqui para vocês poderem aprecia-los) que exemplificam  a renovada intensidade da animação no cinema alternativo cubano.
J. R.:  Falemos de La escritura y el desastre, seu memorável filme de 2007. Me interessa muito o relato das peripécias daquele protagonista, o escritor, que recorre a paisagem urbano do chamado período especial com seus livros no baú de um táxi. A alusão ao livro de Maurice Blanchot no título de seu filme parece muito relevante no tratamento do tema da catástrofe e a pergunta pelo potencial criativo da formas fragmentarias. Como se faz um filme em tempos de emergência?
R. A.: La escritura y el desastre nasce, como projeto, justo quando termino a Escuela de Cine, em agosto de 2004. Eu não sabia o que ia acontecer, o que ia fazer. Sentia que, ainda que tivesse estudado cinema e sonhava em fazer cinema, não poderia realiza-lo porque não havia trabalho para mim na indústria cinematográfica. Além disso, na Escuela me graduei na especialidade de roteiro e a figura do roteirista está muito pouco desenvolvida na industria cubana —creio que, em geral, na America-latina, esta muito subvalorizada—, normalmente são os diretores que escrevem seus roteiros.
Antes de estudar cinema, tinha me graduado em engenharia elétrica, e tinha um grupo de amigos que, como eu, depois de se tornarem engenheiros, haviam cursado estudos em distintas especialidades de cinema —como Humberto Rolens, um engenheiro elétrico que trabalhava na televisão e Ramón González, um engenheiro mecânico que se tornou produtor de televisão—. Tinha recém saído Frutas en el café, o primeiro longa-metragem cubano independente, e pensamos: bom, se isto se pode fazer, nós  também o podemos tentar —algo um pouco quixotesto, não?—. Humberto me disse: “se tu escrever o roteiro, eu faço a fotografia”.
Eu tinha escrito um ensaio sobre a cidade e o graffiti nela; nele eu, um pouco influenciado por La ciudad letrada, de Rama, e muito por Blanchot e a estrutura fragmentaria da escritura, tratava de decodificar os graffiti e as pixações —algo que também ressurgiu nos 90—. Assim converti esse ensaio —que já era romanceado: tinha personagens e diálogos— em um roteiro, algo que também, de certa forma, se diz no filme: há um momento em que o personagem esta escrevendo um romance e termina dizendo que, para solucionar sua dificuldade para publica-lo, escreverá um roteiro, o qual é muito absurdo, e não melhorou, senão que piorou todo.
Então eu incorporei ao roteiro coisas que foram acontecendo no processo mesmo de vida do texto e no pròprio processo de filmagem. Nunca foi um roteiro fechado; tinha capítulos, partes, e podia adequar-se as situações de rodagem que tivéssemos, porque tivemos condições muito muito básicas para filmar.
Assim começa este projeto. Com ele, eu pretendia, se não entender, ao menos pensar o que nos aconteceu, a nós e a sociedade; essa necessidade de encontrar um espaço privado, teu, onde possa se resguardar do caos que se vivia, e desde o qual, talvez, a impossibilidade total, o isolamento total, constroem, de todas formas, um fragmento desse caos dentro do isolamento. Esses são, mais ou menos, os motivos e a origem do projeto de La escritura y el desastre.
J. R.: Raydel, ao menos desde La escritura y el desastre, vens usando a animação em seus filmes. Como explicas o grande interesse que a animação fílmica tem despertado entre os cineastas cubanos nos últimos anos?
R. A.: Acho que aí se juntam várias coisas. Agora mesmo, em todo o mundo, há um auge da animação. Não só em Cuba, os jovens cineastas estão interessados no gênero, senão que, desde já faz um tempo, a animação tem estendido seus horizontes. Inclusive já é muito difícil para alguns pensar o cinema de ficção sem incluir algo de animação; ainda que o cinema de ficção comercial, o que mais se distribui, tenha muito de animação 3D. Creio que primeiro chega isso, como espírito epocal, junto a possibilidade de fazer pequenos trabalhos em sua casa, com recursos próprios, com um simples computador, algo que em outra época era impensável.
J. R.: Parece que a animação nos permite aproximar-nos de um modo alternativo a historia do cinema cubano, porque  ―ao menos, como a trabalhas tu― a animação explora zonas da vida e da cultura que tem sido excluídas ou descartadas pela cultura visual normativa. É um tema que o crítico de cinema cubano, Dean Luis Reyes, também tem comentado bastante…
R. A.: Sim, a mim me interessa um tipo de animação que esteja muito influenciada pelo trabalho dos tchecos, especialmente de Svankmajer ―ainda que eu não faça animação corpórea, es algo que gostaria de fazer―, por esse tipo de visualidade, de surrealismo obscuro, que penetra nos demônios do ser e se preocupa pela sua sexualidade, sua angústia existencial.
Em geral, a animação cubana mais conhecida havia assumido um sentido muito didático, algo que se formalizou à partir dos anos 70, e só nos 90 começa a desligar-se um pouco dessa função. Nunca quis ser didático, senão melhor explorar, e inclusive entrar, com a animação, na ficção.

J. R.: Quando começa o imperativo pedagógico a dominar o cinema e a animação em Cuba?
R. A.: Nos anos 70, depois do Congreso de Educación y Cultura de 1971, as exigências fazem com  que todo o cinema cubano, e não só a animação, se encaminhe para um cinema histórico que reflita a luta de classes. O cinema devia ser um meio de ensino para construir uma forma de pensamento na sociedade. Então se considerava que a animação deveria se feita para as crianças, e não creio que isso levou a pensa-la como um gênero menor.
Para a instituição, o mais sério era o cinema de ficção, e o documental seria como um exercício, um ensaio para se passar a ficção; mas a animação era algo para crianças. E já que era para crianças, devia educá-los. Portanto, sua função didática cresceu intensamente, e outras linhas prévias, que nos 60 exploravam a cultura popular ―como Osain, de Hernán Henríquez―, não frutificaram. Não havia outros caminhos para aquele estilo de música e de desenho que utilizava, por exemplo, as firmas de palo monte e dos abakuá. Se perde então aquele tipo de exploração e se privilegia uma animação de corte histórico e educativo ―assim se inicia Elpidio Valdés, que se tornaria um clássico…
Também se perde a diversidade formal dos 60. A animação cubana começa a ser mais circular, mais amante das linhas não retas, das circularidades… E tal domínio se manterá até os 80, inclusive continua hoje como tendência, ainda que talvez a técnica, ou seja, a passagem do ICAIC ao formato digital, este impondo outras formas, outros estilos.
J. R.: Teu trabalho é independente dos estudios do ICAIC?
R. A.: A maior parte sim o é. São produções autogestionadas e realizadas com a colaboração de muitos amigos e outras pessoas que participam. Mas não é que eu seja contrário a trabalhar com o ICAIC ―em algum momento o fiz―. Se meu projeto seja fatível com o ICAIC, então, nesse momento, trabalho com o ICAIC. Não penso que tenha que ser negado totalmente; é uma instituição mais, como qualquer instituição de cinema, e me aproximaria a ela com meu projeto se me permitissem algum controle sobre a produção.
J. R.: Como se transforma hoje em dia a hierarquia entre ficção, documentário e outros gêneros mediante a um trabalho relativamente independente como o teu, fora da instituição?
R. A.: O trabalho contemporâneo está desfazendo aquela forma de pensar. Em Cuba, o videoclip, por exemplo, sua forma de pensar a edição e a animação está propondo, se não impondo, outro paradigma; e não só entre os realizadores, senão nos espectadores, gerando um público cada vez mas aberto as novas formas ou ávido destas formas de intervenção.

Por outro lado, cada dia é mais evidente que plantearse de forma estática as definições dos gêneros só serve para estudá-los, para categorizar e inventariar… ―algo próprio do pensamento europeu acadêmico―. Muitas vezes, os artistas não tem nada a ver com as categorias, senão com o ato de criar e a necessidade de mostrar o criado de determinada maneira. A isto lhe somamos que, no mundo inteiro, as categorias tem  vindo abaixo, e o que se considerava estável, duradouro ―como os sistemas sociais, os sistemas políticos―, está movendo-se,  nunca se sabe bem em que terreno esta se pisando, nem sequer na vida mesma, a qual, de certa forma, se traslada a arte, porque o artista não esta fora desse contexto.
J. R.: Ante esse tipo de instabilidade formal e cultural, o que te oferece o meio da animação?
R. A.: Eu sou um fascinado pela animação, sempre fui, desde pequeno… Primeiro porque me permite uma grande liberdade para eu sair para uma área mais inconsciente, do que não parece real, da representação do real; para fazer assim, talvez, a representação do meu inconsciente, do que se escapa das formas do espaço cotidiano. Me interessam muito os espaços imaginários, fabulares, e o que está da pele para dentro, o que está na cabeça das pessoas, e isso é muito difícil de filmar. Quando a literatura quis fazer algo similar, com o monólogo interior, teve que romper as formas da sintaxe tradicional para poder entrar en esa vorágine que é o caos do pensamento.
J. R.: Um exemplo de este trabalho radical com a animação e o inconsciente e a violência são os dois curtas cujos links incluímos aqui.  Por que não falamos deles brevemente?
R. A.: El caso de la calle O’Reilly se apropria do desenho, da estética do pintor Enrique Enríquez, e é, de certa forma, uma homenagem a sua obra. Enrique Enríquez e eu temos colaborado a muito tempo, e temos, muito em comum, uma linha de trabalho e de influências mútuas. Ele ia apresentar uma exposição pessoal, e decidi fazer este curta para que fosse exibido em sua exposição. Então, a partir de suas histórias, com todo seu material, armei uma historia e incluí uma performance escrita por mim e atuada por ele próprio Enrique e a atriz Yanet Coba.


É um material sobre um incesto e as obscessões em torno ao incesto, tema pouco comum na animação cubana, na qual a sexualidade e, mais que a sexualidade, o incesto, é um tabu. E não só na animação; não há muito desse tema em todo cinema cubano.
J.R.: A questão do corpo e da sexualidade reaparece também em Arquetipos
R. A.: Em Arquetipos, quis ver como se via o corpo desde um ângulo pouco explorado: como lêem as mulheres o corpo do homem. Arquetipos, é um documentário muito próximo a videoarte ―nele, se solapam as fronteiras―, mediante entrevistas a mulheres que falam sobre sua relação com o pênis e seus seios. No documentário se combinam os seios filmados dessas mulheres com animações, inclusive abstratas. Nunca se vem os rostos; se sugerem coisas através da animação com filmes do desejo, ou seja, um tipo de animação abstrata através das manchas que ao longo vai deixando nos filmes, o qual produz uma aleatoriedade que editei para que simulasse fluidos, algum tipo de secreção. Também usei a animação de desenho. Em geral, não tenho uma linha exata de animação, senão que faço uma colagem ―me interessa muito a collage― e fundo várias técnicas de animação para compor um discurso.
J. R.: E onde se assistem estes filmes? Como circula o cinema experimental em Cuba?
R. A.: Arquetipos ha navegado com bastante sorte, até ganhou um prêmio no festival de cine erótico La Boca Erótica, na Espanha e no Festival de Cine Extremo San Sebastián de Veracruz, no México. Foi exibido na Mostra de Jovens Realizadores e no Festival de Cine Pobre, que, para os estándares de Cuba, são dois festivais importantes. Não foi apresentado no Festival de Cine de La Habana —o grande festival—, mas circulou naqueles, o que mais ou menos vêm a ser a vida que habitualmente têm os curtas em Cuba, sejam ou não independentes. Em Cuba não há uma grande circulação de curtas, a não ser de forma espontânea —as pessoas, passando-lhes de mão em mão, e nestes espaços que se abrem—. Também sei que participou em alguns festivais mais alternativos, com projeções ao ar livre: um grupo de artistas da performance o exibiu em um edifício de Alamar, um subúrbio da capital com uma forte identidade.
Tanto El caso de la calle O’Reilly como Arquetipos tiveram duas vidas: uma institucional e outra alternativa; estou bastante contente com o caminho que eles mesmos foram abrindo.
J. R.: Por outro lado, teu modo de fazer cinema me parece muito próximo a literatura. Nos conte, se te parece, sobre a relação entre teus escritos literários e teu trabalho fílmico.
R. A.: Sou uma única pessoa, não duas: um que escreve literatura e outro que faz cinema. Todo meu trabalho esta muito vinculado. Venho da literatura, e com essa formação literária, chego ao cinema, e entro nele deslumbrado pela Nueva Ola (Novelle Vague) francesa, que também tinha uma formação muito literária… Soube que haviam escrito nos Cahiers du Cinéma, haviam sido críticos de cinema, e que em seus filmes também mantinham um diálogo direto com a literatura: se leem textualmente, se citam a determinados autores. Nesse movimento, o cinema rende culto a literatura.
J. R.: Ao ler seus livros de contos, sobretudo Requiem para las hormigas (Editorial Letras Cubanas, 2008) é muito impressionante sua leitura de Borges. O que te interessou da sua obra?
R. A.: Tenho uma grande influência de Borges. Recordo quando fomos adquirindo vários livros de Borges nos anos 90 nada menos que durante o período especial. Começamos com a antologia publicada pela Casa das Américas, editada por Retamar, que inclui um grupo de contos e um conjunto de ensaios. Você nunca sabia se os ensaios eram contos e os contos, ensaios; era muito surpreendente para o que você esperava encontrar como definição do que é um gênero.
J. R.: Parece ser que a hibridez ou porosidade que descreves ao falar de teu trabalho fílmico têm um possível antecedente nos ensaios-ficções de Borges, onde se misturam gêneros de reflexão e da pesquisa intelectual com a ficção e o ato da conjectura…
R. A.: Sim, sem dúvida, por exemplo, no conto «Tlön, Uqbar, Orbis Tertius», que promete ser uma coisa, que gera uma expectativa no leitor, e depois a desfaz e arma outra, como se a escrita tivesse a liberdade de fluir a distintas zonas e não ater-se as exigências classificatórias dos gêneros. Essa liberdade,  essa escrita da linguagem mesmo, que poe a linguagem como agente, a interrogar a linguagem e chega aos problemas das pessoas também em sua linguagem, se tornaram muito atrativas para mim.
J.R.:  Por outro lado, a exploração do estilo grotesco em vários de seus filmes e teu trabalho com o absurdo indicam uma leitura da obra de Virgilio Piñera. Em Virgilio Piñera, o grotesco implica certa violência, no plano temático, na direção dos corpos. Penso, por exemplo, em La carne de René, onde a violência está orientada a uma cena pedagógica. Recordo que é importante a referencia a esta novela em teu filme La escritura y el desastre.
R. A.: Sim, a violência no estória de Piñera está metida dentro da instituição escolar, dentro de uma instituição… O curioso é que La carne der René é muito anterior a Revolución, acho que é dos anos 50… Em La carne de René, Virgilio, sem dívida, esta discutindo com a instituição cultural cubana, e para ele é um momento em que as instituiçoes se mostram fraturadas, como essa república que se atolou e vive em uma espécie de torpor. Desde um fora, todo o tempo está tratando de mover seu passos, essas construçoes, e a sociedade mesma, essa sociedade burguesa que, de certa forma, nos años 50, já se tinha consolidado.
Nos 90 também ocorre uma decadência das instituiçoes, pela própria decadência do país; o país atravessava uma crise tremenda e essa crise sacode tudo, o social, o institucional, o privado… E creio que foi um bom momento para uma releitura de Virgilio: o corpo se pôs em função ―é o momento do auge da prostituição em Cuba, quando também se vende, como atração turística, a figura do cubano, o corpo mesmo do cubano― e a religião cubana começa a ter força ―depois que permitem aos religiosos entrar ao Partido e tudo mais― e há um florescimento visível de pessoas que ostentam ser religiosas, mas também se volta uma ostentação do corpo, começa uma parte folclórica importante. Ou seja, em Cuba nos 90, o corpo entra em movimento, e creio que não há forma de pensar nos 90 sem se chocar com o que é o corpo do cubano mesmo nessa época, com o que faz com seu corpo.
J. R.: É um tema muito complexo, pelo modo em que se tem moralizado a questão sexual e também pelo que seria uma nova política econômica dos corpos durante a mesma época em que se vai construindo o corpo-mercadoria, um corpo que circula em um mercado global das imagens e do gozo, um mercado dedicado ao turismo, não só ao turismo sexual, senão as apropriações da cultura cubana como cultura do prazer.  É justamente nesse momento quando o grotesco de Virgilio Piñera ressurge entre os jovens escritores como uma opção antinormativa e interruptora.
R.A.: Acho que os 1990 trouxeram essa nova visão do sexual, que começa desde o que ocorre de projeção sexual na sociedade, como no caso mesmo da prostituição. Isto aparece aludido em El caso de la calle O´Reiley. A literatura vai fazer uma apropriaçao que é parte de uma linha de realismo sujo, que estaria como em outra ponta do realismo revolucionário,  mas na mesma corda  É uma espécie de evolução…
J. R.: Uma espécie de evolução descarrilhada das mesmas práticas do realismo instituído pela revolução?
R. A.: Sim. É só por em um extremo algo que já era próprio dos escritores que começam a publicar nos 1980, como José Miguel Fajardo, Monchy, quem publica Nosotros vivimos en el submarino amarillo, que é um dos primeiros livros sobre o tema dos muchachos formados nas escolas, e é realmente muito duro, muito violento e, em ocasiões, sujo —já aparece, também, o tema da merda—.
De todas maneiras, nos 90 se gera uma demanda fora de Cuba, os 90 têm a marca da abertura. Como os escritores não podiam publicar em Cuba, começaram a publicar fora de Cuba. Havia um mercado espanhol, fundamentalmente; mas também se abriram a outras zonas da Europa. Um mercado muito interessado pelo que permanecia da revolução, por esse período pós-muro, pós União Soviética, que gerou uma curiosidade —as vezes insípida, as vezes antropológica— de perguntar-se: “como esta gente tem sobrevivido?, vamos olhá-los”. Então, se produziu uma literatura nesse caminho, que mostrava ao cotidiano em seu momento mais duro e na miséria das relações em meio da necessidade e do desespero daquela etapa. E essa literatura teve muita demanda. Creio que no extremo dessa literatura que vai avançando, cada vez mais, para o realismo sujo está Pedro Juan Gutiérrez, com seu primeiro livro, Rey de La Habana, e sua Trilogía sucia de La Habana.
Quando eu começo a escrever, para mim era muito evidente que esse era um caminho iniciado por uma geração anterior, que tomava muito a sério o tema do real e que entendia o real como a realidade social e consequência social. Ao não existir em Cuba um espaço para a crônica  –algo que devia ter sido feito pela imprensa—, a literatura se fez cargo. Mas para mim nunca interessou este tipo de espaço destinado a divulgar como é o cotidiano em Cuba, sobretudo porque eu vivo o cotidiano cubano e não me faz falta, além disso, falar sobre ele. Então, me interessou mais a relação do sujeito agônico, e ali entram no jogo Cioran e o tema da decadência e seu papel nas culturas. E para lá se tem movido meu cinema, para buscar um cinema da decadência, porque acho que ai emergem formas novas, formas que ainda estão por nascer, por consolidar-se. Isso, em meu cinema e em minha literatura, que tem um sentido do fantástico, do absurdo, do agônico, mas que em nenhum momento pretendem ser realistas no sentido clássico da palavra, nem buscam a reprodução fiel dos caracteres.
J.R.: Por outro lado, outras zonas de teu trabalho fílmico “documentam”, digamos assim,  a cultura contemporânea cubana, sobretudo sua criatividade em certas zonas chamadas marginais. Me refiro sobretudo ao mundo da poesia de rua e da performance em teus documentários sobre Alamar Express.

R. A.: Quando conheci Omni Zona Franca e a seus integrantes, ainda estava terminando meu projeto de poesia visual, de arte postal, e me interessava a performance dos 1990 —herdeiro do importante movimento na plástica do final dos anos 80, que incluiu a  performance como expressão, como um espaço de representação e poetização do corpo. Sua força chegou um pouco atenuada porque muitos dos artistas emigraram nos anos 90. Em Omni Zona Franca encontrei uma leitura poética, mais que plástica, da performance: combinavam a encenação e o trabalho com textos literários, especialmente de Ángel Escobar, um poeta dos 80 que se havia suicidado e começava a ser uma figura um tanto mítica dentro do panorama literário dos 90. Escobar viveu em Alamar, e Omni Zona Franca o reinterpretava: montavam seus poemas nas performances e o rapeavam. Os 90 são um momento de cultura emergente, de rap e outros fenômenos não centrais, porque o controle institucional se havia minimizado pela crise, e as zonas periféricas, de cultura alternativa, se fizeram ver com mais força, ocupando o espaço que deixava o vazio institucional. Omni Zona Franca havia incorporado o rap, havia incorporado a oralidade, era um grupo de artistas essencialmente orais e plásticos, mas que, cada vez mais, haviam indo centrando-se na poesia como eslabón principal. Eu os conhecí em seu momento de maior auge, e me interessou muito filmar o movimento de performance que havia em La Habana então, um movimento que, sem estar anclado em nenhum local, algumas instituições culturais tratavam de canalizar de uma forma ou de outra. Durante cinco anos, entre 2002 —justo quando ingressei na Escuela Internacional de Cine— e 2007, fiz uma sequência fílmica daquele movimento, daquele espírito da performance.  Me tornei parte deles, me incluíram em suas performances, eu era o tipo que ia com a câmera e eles dialogavam comigo, metidos todos naquela dinâmica que fluía em suas performances.

E a antropologia em Cuba como será que esta? Raydel Araoz nos mostra em seu filme...
Una versión distinta de la entrevista, más extensa, apareció en Imagofagia de la Argentina. Agardezco la edición preliminar de la entrevista que facilitaron Mercedes Melo y Tupac Pinilla.

Originalmente publicada em : http://www.80grados.net/catastrofe-y-animacion-en-el-cine-alternativo-cubano/
Livre traduçao para o português: Juvei

Um comentário:

  1. Murió Tulio Raggi, pionero del cine de animados en Cuba

    (2013-12-03)

    Tulio Raggi González, destacado director y guionista del cine de animación, murió en la mañana de este martes en La Habana, según informaron a Cubadebate amigos y familiares cercanos.

    Raggi, pionero del género en Cuba, fue el autor de obras como El negrito cimarrón (1975), El primer paso de papá (1977) o Las orejas de Canela (1985), obras consideradas clásicos de la animación cubana.

    El negrito cimarrón

    Licenciado en Historia del Arte, realizó estudios de Derecho Civil y Diplomático, así como de Teoría de la música, solfeo y piano en el Conservatorio Miramar de Animación de la Academia Garcés. Dirigió más de 60 obras y algunas de ellas han merecido múltiples reconocimientos nacionales e internacionales.

    El primer paso de papá

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